monstros antigos
caderno de rascunhos para a poesia de porfírio silva
3 de outubro de 2021
10 de setembro de 2021
Sobressalto
(Para Jorge Sampaio)
Depois de uma manhã quebrada da friura
E de um fugaz pináculo do dia
Cai agora a tarde sereníssima
O silêncio das árvores calou os pássaros
A imensidão da noite amansou o mar
E uma súbita solidão
Acrescentada às dores do mundo
Reclama um sobressalto
Inadiável sem remorso.
Camarada, seguimos-te nisso:
O fastio do quotidiano não nos adormecerá.
10 de Setembro de 2021
10 de janeiro de 2021
História completa do momento presente
10 de janeiro de 2021
7 de janeiro de 2021
Decameron
Uma e outra vez, a natureza
dentes afiados cravados no nosso cachaço
arranca da habitação
expulsa da cidade e da assembleia
entrega à floresta densa, nebulosa e violenta
legiões de corpos doados ao medo, à disputa, à incerteza
gente abandonada ao vento inclemente
do deus omnipotente instinto de sobrevivência
onde garras aguçadas são veludo, luvas de baile
mandado. Passados todos estes séculos,
regressamos:
a Florença de que saímos vagueia expatriada,
não tomamos já doses certas diárias de estórias
e, contudo, dez dias de afastamento e delírio
ainda satisfazem o alto conceito de retiro
orquestrado para arrancar lobos ao convívio dos lobos.
A comédia humana não conhece os dantescos degraus
entre o inferno, o purgatório e o céu,
as personagens são inteiramente terrenas
e térreas todas as suas moradas:
como um caminho ignoto na floresta
a peste apaga a ordem e a desordem
sem leis só existe a força
e a diferença na força
e a lei da força,
a fraca figura de uma espada de madeira
quando as de aço ferem:
a fome é tão contagiosa como a peste,
nenhuma se cura com castidade
nem se distrai com a alegria.
Decameron,
dez dias para um tempo de encruzilhadas
onde os caminhos se separam
precisamente nos lugares
onde antes se juntaram.
(Janeiro de 2021)
16 de novembro de 2020
o mistério do nada, 2
quem no mistério do nada só vê lava
e os arbustos da ilha em frente,
sem os séculos crescidos sobre o medo,
sem o espanto, as interpretações originais
e as derivadas, as obras literárias e a teologia,
as migrações, as peregrinações e os dias andados
antes de todas as viagens se tornarem excursões,
quem no mistério do nada só vê
o que se vê, dirá
que os mistérios do nada não existem.
Ou são somente um capítulo da física do vácuo.
(Ilha do Pico, Agosto de 2015)
o mistério do nada, 1
o mistério do nada é lava e arbustos, distância,
menos geografia do que toponímia popular e desregrada,
mais vistas vagas e vagarosas do que lugar numa viagem,
uma história inteiramente fora da tradição vero testamentária
pois aqui a sarça e o fogo não pegaram um único acontecimento.
o mistério do nada não existe,
ao ser esta formação vulcânica visitável em grupo
e o nada somente um inferno de solidão.
(Ilha do Pico, Agosto de 2015)